O Ceticismo Pirrônico
Ícaro
Há quem diga que o tempo em que vivemos é
caracterizado, sobretudo, pela ausência de certezas. Um papo de que muitos dos
alicerces que serviram de sustentáculo para nossas verdades e convicções, para
nossa ética, conhecimento e cultura, já não servem mais, ruíram. E que agora,
na atual conjuntura em que o mundo se encontra, em pleno século XXI, ficamos
como que sem um solo muito firme para caminhar. Parece que, ao contrário de
hoje, ontem, no velho mundo, sabíamos o que fazíamos, conhecíamos supostamente
até mesmo os limites do próprio conhecimento. Até que, com o avanço da
tecnologia e o conseqüente desenvolvimento da ciência e do pensamento, nos
demos conta de que muita coisa não funcionava assim, da maneira como
ingenuamente supúnhamos.
Porém, há gente que há muito tempo, cerca de XXII/
XXIII séculos atrás já havia desconfiado e denunciado a instabilidade e a
ausência de apoio sob a qual as supostas verdades e conhecimentos humanos se
estruturavam e se desenvolviam. Tais pensadores são chamados de céticos, uma
corrente filosófica que gerou muita polêmica na antiga Grécia, e também na
história da filosofia.
Há mais de uma versão acerca da origem do ceticismo,
mas sabemos que ela está associada à figura de Pirro de Élis (365 – 275 a. C.).
Pirro dedicou-se, no período de sua juventude, à pintura. Porém logo passou a
ocupar-se com filosofia. Pirro nada escreveu, por isso sabemos pouco sobre sua
vida, o que nos chegou foram escritos de alguns discípulos, e o testemunhos de
Diógenes de Laércio (fazer janela).
De acordo com esses registros, Pirro participou da
expedição de Alexandre ao Oriente, onde teria tido contato com uma grande
diversidade de hábitos, crenças, valores, e pensamentos. O testemunho de
Diógenes afirma que Pirro, nesta expedição ao oriente, teria conhecido certos
sábios indianos, os gimnosofistas, que se dedicavam à superação das
necessidades humanas, visando atingir uma indiferença suprema às coisas, e a
imperturbabilidade de espírito. Segundo Diógenes, o contato com esse tipo de
pensamento foi extremamente marcante para o filósofo, e teve influência direta
na formulação de seu próprio pensamento. Daí teria derivado a concepção
pirrônica de akatalexia, a incompreensibilidade, ou irrepresentabilidade
das coisas.
Conta-se que Pirro, com sua doutrina fundamentada na akalexia,
tinha uma pretensão exclusivamente ética: visava à conquista da felicidade. Sua
doutrina tinha por finalidade conduzir à vida feliz. O filósofo pensava que era
a felicidade o objetivo da vida humana.
Com suas idéias e doutrinas, Pirro atraiu muitos
discípulos, que mesmo após sua morte, continuaram a desenvolver e pregar suas
idéias, que destoavam bastante das filosofias presentes na Grécia, e causavam
forte polêmica. Enesidemo, no século I d. C., intitulava-se seguidor do velho
Pirro, e começou um movimento o qual denominou Sképsis, termo que
significa ‘reflexão, observação, exame’, mas que posteriormente passou a
traduzir-se por ceticismo. E os partidários deste movimento filosófico foram
chamados de céticos.
Correntes filosóficas muito cultuadas entre os gregos,
como o platonismo e o aristotelismo, foram fortemente atacadas pelos céticos,
que as julgavam dogmáticas, por sua pretensão ao estabelecimento de juízos
objetivos acerca da realidade. Por meio da dialética (fazer uma janela), método
muito caro aos filósofos antigos, os céticos cunhavam dois argumentos
contraditórios e equivalentes que chegavam a conclusões absolutamente opostas
acerca do mesmo problema. Eram as chamadas antinomias. Essa
prática era utilizada com a finalidade de mostrar que é impossível provar algo
por meio de argumentos, pois a tese contrária também pode ser provada.
Um expressivo representante do ceticismo pirrônico foi
Sexto Empírico (data), que organizou uma lista onde se encontram 10 célebres
argumentos céticos, que ficaram conhecidos como os dez argumentos contra a
verdade, ou, Hipotiposes Pirrônicas.
Desta lista, pelo menos 5 deles encontram-se disponíveis abaixo, para que possamos pensar questões que, há
pelo menos dois milênios permanecem absolutamente pertinentes e atuais.
O primeiro tropo refere-se à diferença entre seres
vivos no que diz respeito ao prazer e à dor, ao dano e à utilidade. Daí se
deduz que eles não recebem as mesmas impressões dos mesmos sujeitos e que,
portanto, tal conflito gera necessariamente a epoché, a suspensão do juízo.
Alguns dos seres vivos se reproduzem sem mistura, como
aqueles que vivem no fogo, a fênix e os vermes; outros, por meio da união dos
corpos, como os homens. Como alguns são constituídos de um modo, outros de modo
diverso, também as suas sensações são diferentes. Assim, por exemplo, os
falcões tem olhos acutíssimos, os cães te olfato finíssimo.
É lógico, portanto, que à diferença da faculdade
visual corresponda a diferença das expressões. E se o talo para a cabra é
comestível, para o homem é amargo; e se a codorniz alimenta-se da cicuta, esta
é mortal para o homem; e se o porco como os excrementos, o cavalo não os come.
O segundo tropo refere-se a natureza e às idiossincrasias
dos homens. Por exemplo, Demofonte, mordomo de Alexandre, aquecia-se à sombra,
ao passo que ao sol sentia frio. Andron de Argos, como reporta Aristóteles,
viajava pelos áridos desertos da Líbia sem beber.
Além disso há quem prefira cultivar a medicina, quem
prefira cultivar os campos, quem prefira se dedicar ao comércio; e a mesma
profissão traz danos a alguns e, a outros, vantagens; daí se conclui a
necessidade de suspender o juízo.
O
terceiro tropo é determinado pela diferença dos poros que transmitem as
sensações. Assim, a maçã dá a impressão de ser pálida à vista, doce ao paladar,
perfumada ao olfato. E a mesma figura vê-se ora de um modo, ora de outro,
segundo a diferença dos espelhos. Daí decorre que aquilo que aparece não
corresponde a tal forma mais do que uma outra.
O quinto tropo é referente à educação, às leis, às
crenças na tradição mítica, aos pactos entre o povo e às concepções dogmáticas.
Ele envolve os pontos de vista sobre aquilo que é belo ou feio, verdadeiro ou
falso, bom ou ruim, sobre os deuses, e sobre a formação e corrupção do mundo
fenomênico. A mesma coisa para alguns é justa, para outros, injusta, ou ainda,
para alguns é boa, para outros, ruim. Os persas não consideram estranha a união
corporal com a filha; os gregos, ao contrário, reputam-na pecaminosa. Os
massagetas, como relata também Eudoxo no primeiro livro de Volta da Terra,
admitem a comunhão das mulheres, os gregos não a admitem. Os cilícios
desfrutavam da pirataria, os gregos, não.
Cada povo crê nos seus deuses e há quem acredite na
providência e quem não acredite. Os egípcios embalsamam os seus mortos antes de
sepultá-los, os romanos cremam-nos e os peônios jogam-nos nos pântanos. A
consequência é a suspensão do juízo sobre a verdade.
O nono tropo diz respeito à continuidade, ou à
estranheza, ou à raridade dos fenômenos. Assim, os terremotos não provocam
espanto àqueles junto aos quais ocorrem continuamente, e tampouco o sol, porque
é visto todos os dias.
Interpretação:
A primeira vista, com tal argumentação,
parece que os céticos nos colocam em situação demasiadamente embaraçosa. O
desconforto que sua filosofia supostamente provoca é agudo e imediato. A primeira pergunta que nos é
conveniente pensar seria: o que os céticos pretendiam com tal argumentação? Nos
dizer algo sobre a realidade das coisas, ou antes traçar os limites do
conhecimento humano? Provar que o homem é incapaz de conhecer qualquer coisa,
sendo a cognição uma tarefa impossível? Parece que não. Antes ainda de
respondermos, consideremos com cautela um dos argumentos aqui expostos.
O primeiro argumento enfatiza a peculiaridade dos
diferentes organismos presentes no mundo. Por apresentarem constituições
orgânicas muito distintas e singulares, consequentemente os seres vivos
manifestam diversas maneiras de sentir e perceber o mundo, e diferentes olhares
e perspectivas sobre uma mesma coisa. Portanto seus juízos acerca das coisas
não coincidem, mas são extremamente diferentes, opostos. Sendo assim, cada
espécie tem uma relativa percepção da realidade, fornecendo juízos sempre
relativos. Isso impede a viabilidade da instituição de um juízo universalmente
válido e seguro. Por isso, a única saída possível é a epoché, a
suspensão de tais juízos.
Os demais argumentos vão se configurar seguindo essa
mesma lógica, são apresentadas razões que tornam inviáveis o estabelecimento de
verdades absolutas, que apontam para a impossibilidade da obtenção de juízos
universalmente válidos. E como consequência, a fim de evitar uma posição
errônea, para não correr o risco de ficar preso no dogma, a atitude mais
adequada a ser assumida seria a suspensão do juízo, um ato de neutralidade, o
qual esses filósofos chamavam epoché.
Valendo-se de argumentos tais, os céticos colocam sob suspeita toda e
qualquer afirmação que se pretenda verdadeira e universal sobre a realidade das
coisas. Com isso o ceticismo pirrônico critica fortemente filosofias que, por
meio do pensamento filosófico, julgavam conhecer a verdade, a realidade em si,
a natureza e a essência das coisas.
Essa
radical atitude de assumir a ausência de certezas parece, à primeira vista,
necessariamente implicar um certo sofrimento, uma angústia gerada pela
instabilidade, pela ausência de apoio. Incerteza, dúvida, grosso modo, tem a
ver com inquietação, perturbação. No entanto, ao propor a epoché, os
céticos tinham a intenção exatamente contrária a esta.
Em
meio às diferenças e contradições concernentes aos seres, aos povos, às crenças
e aos discursos, em meio ao embate de idéias, os céticos, tendo como
instrumento a razão, encontravam na indiferença, na suspensão um lugar de
tranqüilidade. Assumindo a posição de indiferença, de neutralidade, era
possível encontrar a paz. Como uma luz gerada em meio ao caos, a epoché se
apresenta como a saída para alcançar a imperturbabilidade, a ataraxia.
Nesse sentido, a ataraxia se constitui como
estado de ausência de perturbação, de serenidade, de paz e indiferença,
conquistado apenas por meio da epoché. Essa, na perspectiva cética,
seria a via possível para atingir a eudaimonia, a vida feliz, tão
desejada pelos gregos.
Portanto, a filosofia cética já na antiguidade,
promoveu uma crítica da razão, fazendo a denúncia de pensamentos e sistemas que
acreditavam determinar a realidade objetiva do mundo. Esforçando-se para
livrar-se do dogmatismo, o pensamento cético almejava, em ultima instância,
alcançar a imperturbabilidade e, consequentemente, a felicidade.
Exercícios
·
Explique
os conceitos de ataraxia, eudaimonia, e epoché, situando-os e ralacionando-os,
de acordo com o pensamento cético:
·
Explique
o que eram as antinomias, e com que finalidade os céticos as praticavam:
·
Exponha
dois argumentos, utilizados pelos céticos, para se chegar à suspensão do juízo:
·
O
que pretendiam os céticos, em ultima instância, com a sua filosofia?
·
Você
acredita ser possível conhecer a realidade em sua natureza, exatamente como ela
é? Justifique sua resposta.
Proposta de
Atividade:
Dividir a
turma em dois grupos, e brincar de construir antinomias. O professor deve
sugerir um problema, como por exemplo: Somos seres dotados de alma? E
cada grupo deve tentar construir argumentos que dê duas respostas à questão,
evidentemente opostas. O grupo que conseguir formular a melhor antinomia, a
mais plausível, vence.
Sugestões
de filmes:
O labirinto
do Fauno
Alice no
País das Maravilhas
Sugestões
de músicas:
Metamorfose
ambulante – Raul Seixas
Sugestão de
poesia:
O Mistério
das cousas, onde está ele?
Onde está
ele que não aparece
Pelo menos
a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o
rio disso, e que sabe a árvore?
E eu que
não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que
olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um
regato que soa fresco numa pedra.
Porque o
único sentido oculto das cousas
É elas não
terem sentido oculto nenhum,
É mais
estranho do que todas as estranhezas
E do que os
sonhos de todos os poetas
E os
pensamentos de todos os filósofos,
Que as
cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja
nada que compreender.
Sim, eis o
que os meus sentidos
Aprenderam
sozinhos:
As cousas
não tem significação: tem existência
As cousas
são o único sentido oculto das cousas.
Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando
Pessoa
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