sábado, 21 de dezembro de 2013

O Ceticismo Pirrônico



O Ceticismo Pirrônico
Ícaro 
Há quem diga que o tempo em que vivemos é caracterizado, sobretudo, pela ausência de certezas. Um papo de que muitos dos alicerces que serviram de sustentáculo para nossas verdades e convicções, para nossa ética, conhecimento e cultura, já não servem mais, ruíram. E que agora, na atual conjuntura em que o mundo se encontra, em pleno século XXI, ficamos como que sem um solo muito firme para caminhar. Parece que, ao contrário de hoje, ontem, no velho mundo, sabíamos o que fazíamos, conhecíamos supostamente até mesmo os limites do próprio conhecimento. Até que, com o avanço da tecnologia e o conseqüente desenvolvimento da ciência e do pensamento, nos demos conta de que muita coisa não funcionava assim, da maneira como ingenuamente supúnhamos.
Porém, há gente que há muito tempo, cerca de XXII/ XXIII séculos atrás já havia desconfiado e denunciado a instabilidade e a ausência de apoio sob a qual as supostas verdades e conhecimentos humanos se estruturavam e se desenvolviam. Tais pensadores são chamados de céticos, uma corrente filosófica que gerou muita polêmica na antiga Grécia, e também na história da filosofia.
Há mais de uma versão acerca da origem do ceticismo, mas sabemos que ela está associada à figura de Pirro de Élis (365 – 275 a. C.). Pirro dedicou-se, no período de sua juventude, à pintura. Porém logo passou a ocupar-se com filosofia. Pirro nada escreveu, por isso sabemos pouco sobre sua vida, o que nos chegou foram escritos de alguns discípulos, e o testemunhos de Diógenes de Laércio (fazer janela).
De acordo com esses registros, Pirro participou da expedição de Alexandre ao Oriente, onde teria tido contato com uma grande diversidade de hábitos, crenças, valores, e pensamentos. O testemunho de Diógenes afirma que Pirro, nesta expedição ao oriente, teria conhecido certos sábios indianos, os gimnosofistas, que se dedicavam à superação das necessidades humanas, visando atingir uma indiferença suprema às coisas, e a imperturbabilidade de espírito. Segundo Diógenes, o contato com esse tipo de pensamento foi extremamente marcante para o filósofo, e teve influência direta na formulação de seu próprio pensamento. Daí teria derivado a concepção pirrônica de akatalexia, a incompreensibilidade, ou irrepresentabilidade das coisas.
Conta-se que Pirro, com sua doutrina fundamentada na akalexia, tinha uma pretensão exclusivamente ética: visava à conquista da felicidade. Sua doutrina tinha por finalidade conduzir à vida feliz. O filósofo pensava que era a felicidade o objetivo da vida humana.
Com suas idéias e doutrinas, Pirro atraiu muitos discípulos, que mesmo após sua morte, continuaram a desenvolver e pregar suas idéias, que destoavam bastante das filosofias presentes na Grécia, e causavam forte polêmica. Enesidemo, no século I d. C., intitulava-se seguidor do velho Pirro, e começou um movimento o qual denominou Sképsis, termo que significa ‘reflexão, observação, exame’, mas que posteriormente passou a traduzir-se por ceticismo. E os partidários deste movimento filosófico foram chamados de céticos.
Correntes filosóficas muito cultuadas entre os gregos, como o platonismo e o aristotelismo, foram fortemente atacadas pelos céticos, que as julgavam dogmáticas, por sua pretensão ao estabelecimento de juízos objetivos acerca da realidade. Por meio da dialética (fazer uma janela), método muito caro aos filósofos antigos, os céticos cunhavam dois argumentos contraditórios e equivalentes que chegavam a conclusões absolutamente opostas acerca do mesmo problema. Eram as chamadas antinomias. Essa prática era utilizada com a finalidade de mostrar que é impossível provar algo por meio de argumentos, pois a tese contrária também pode ser provada.
Um expressivo representante do ceticismo pirrônico foi Sexto Empírico (data), que organizou uma lista onde se encontram 10 célebres argumentos céticos, que ficaram conhecidos como os dez argumentos contra a verdade, ou, Hipotiposes Pirrônicas.  Desta lista, pelo menos 5 deles encontram-se disponíveis abaixo, para que possamos pensar questões que, há pelo menos dois milênios permanecem absolutamente pertinentes e atuais.


O primeiro tropo refere-se à diferença entre seres vivos no que diz respeito ao prazer e à dor, ao dano e à utilidade. Daí se deduz que eles não recebem as mesmas impressões dos mesmos sujeitos e que, portanto, tal conflito gera necessariamente a epoché, a suspensão do juízo.
Alguns dos seres vivos se reproduzem sem mistura, como aqueles que vivem no fogo, a fênix e os vermes; outros, por meio da união dos corpos, como os homens. Como alguns são constituídos de um modo, outros de modo diverso, também as suas sensações são diferentes. Assim, por exemplo, os falcões tem olhos acutíssimos, os cães te olfato finíssimo.
É lógico, portanto, que à diferença da faculdade visual corresponda a diferença das expressões. E se o talo para a cabra é comestível, para o homem é amargo; e se a codorniz alimenta-se da cicuta, esta é mortal para o homem; e se o porco como os excrementos, o cavalo não os come.
O segundo tropo refere-se a natureza e às idiossincrasias dos homens. Por exemplo, Demofonte, mordomo de Alexandre, aquecia-se à sombra, ao passo que ao sol sentia frio. Andron de Argos, como reporta Aristóteles, viajava pelos áridos desertos da Líbia sem beber.
Além disso há quem prefira cultivar a medicina, quem prefira cultivar os campos, quem prefira se dedicar ao comércio; e a mesma profissão traz danos a alguns e, a outros, vantagens; daí se conclui a necessidade de suspender o juízo.
            O terceiro tropo é determinado pela diferença dos poros que transmitem as sensações. Assim, a maçã dá a impressão de ser pálida à vista, doce ao paladar, perfumada ao olfato. E a mesma figura vê-se ora de um modo, ora de outro, segundo a diferença dos espelhos. Daí decorre que aquilo que aparece não corresponde a tal forma mais do que uma outra.
O quinto tropo é referente à educação, às leis, às crenças na tradição mítica, aos pactos entre o povo e às concepções dogmáticas. Ele envolve os pontos de vista sobre aquilo que é belo ou feio, verdadeiro ou falso, bom ou ruim, sobre os deuses, e sobre a formação e corrupção do mundo fenomênico. A mesma coisa para alguns é justa, para outros, injusta, ou ainda, para alguns é boa, para outros, ruim. Os persas não consideram estranha a união corporal com a filha; os gregos, ao contrário, reputam-na pecaminosa. Os massagetas, como relata também Eudoxo no primeiro livro de Volta da Terra, admitem a comunhão das mulheres, os gregos não a admitem. Os cilícios desfrutavam da pirataria, os gregos, não.
Cada povo crê nos seus deuses e há quem acredite na providência e quem não acredite. Os egípcios embalsamam os seus mortos antes de sepultá-los, os romanos cremam-nos e os peônios jogam-nos nos pântanos. A consequência é a suspensão do juízo sobre a verdade.
O nono tropo diz respeito à continuidade, ou à estranheza, ou à raridade dos fenômenos. Assim, os terremotos não provocam espanto àqueles junto aos quais ocorrem continuamente, e tampouco o sol, porque é visto todos os dias.


Interpretação:

A primeira vista, com tal argumentação, parece que os céticos nos colocam em situação demasiadamente embaraçosa. O desconforto que sua filosofia supostamente provoca é agudo e imediato.  A primeira pergunta que nos é conveniente pensar seria: o que os céticos pretendiam com tal argumentação? Nos dizer algo sobre a realidade das coisas, ou antes traçar os limites do conhecimento humano? Provar que o homem é incapaz de conhecer qualquer coisa, sendo a cognição uma tarefa impossível? Parece que não. Antes ainda de respondermos, consideremos com cautela um dos argumentos aqui expostos.
O primeiro argumento enfatiza a peculiaridade dos diferentes organismos presentes no mundo. Por apresentarem constituições orgânicas muito distintas e singulares, consequentemente os seres vivos manifestam diversas maneiras de sentir e perceber o mundo, e diferentes olhares e perspectivas sobre uma mesma coisa. Portanto seus juízos acerca das coisas não coincidem, mas são extremamente diferentes, opostos. Sendo assim, cada espécie tem uma relativa percepção da realidade, fornecendo juízos sempre relativos. Isso impede a viabilidade da instituição de um juízo universalmente válido e seguro. Por isso, a única saída possível é a epoché, a suspensão de tais juízos.
Os demais argumentos vão se configurar seguindo essa mesma lógica, são apresentadas razões que tornam inviáveis o estabelecimento de verdades absolutas, que apontam para a impossibilidade da obtenção de juízos universalmente válidos. E como consequência, a fim de evitar uma posição errônea, para não correr o risco de ficar preso no dogma, a atitude mais adequada a ser assumida seria a suspensão do juízo, um ato de neutralidade, o qual esses filósofos chamavam epoché.  Valendo-se de argumentos tais, os céticos colocam sob suspeita toda e qualquer afirmação que se pretenda verdadeira e universal sobre a realidade das coisas. Com isso o ceticismo pirrônico critica fortemente filosofias que, por meio do pensamento filosófico, julgavam conhecer a verdade, a realidade em si, a natureza e a essência das coisas.
            Essa radical atitude de assumir a ausência de certezas parece, à primeira vista, necessariamente implicar um certo sofrimento, uma angústia gerada pela instabilidade, pela ausência de apoio. Incerteza, dúvida, grosso modo, tem a ver com inquietação, perturbação. No entanto, ao propor a epoché, os céticos tinham a intenção exatamente contrária a esta.
            Em meio às diferenças e contradições concernentes aos seres, aos povos, às crenças e aos discursos, em meio ao embate de idéias, os céticos, tendo como instrumento a razão, encontravam na indiferença, na suspensão um lugar de tranqüilidade. Assumindo a posição de indiferença, de neutralidade, era possível encontrar a paz. Como uma luz gerada em meio ao caos, a epoché se apresenta como a saída para alcançar a imperturbabilidade, a ataraxia.
Nesse sentido, a ataraxia se constitui como estado de ausência de perturbação, de serenidade, de paz e indiferença, conquistado apenas por meio da epoché. Essa, na perspectiva cética, seria a via possível para atingir a eudaimonia, a vida feliz, tão desejada pelos gregos.
Portanto, a filosofia cética já na antiguidade, promoveu uma crítica da razão, fazendo a denúncia de pensamentos e sistemas que acreditavam determinar a realidade objetiva do mundo. Esforçando-se para livrar-se do dogmatismo, o pensamento cético almejava, em ultima instância, alcançar a imperturbabilidade e, consequentemente, a felicidade.

                                                                                                                                                                                                                                                                                           Exercícios
·         Explique os conceitos de ataraxia, eudaimonia, e epoché, situando-os e ralacionando-os, de acordo com o pensamento cético:

·         Explique o que eram as antinomias, e com que finalidade os céticos as praticavam:

·         Exponha dois argumentos, utilizados pelos céticos, para se chegar à suspensão do juízo:

·         O que pretendiam os céticos, em ultima instância, com a sua filosofia?

·         Você acredita ser possível conhecer a realidade em sua natureza, exatamente como ela é? Justifique sua resposta.

Proposta de Atividade:
Dividir a turma em dois grupos, e brincar de construir antinomias. O professor deve sugerir um problema, como por exemplo: Somos seres dotados de alma? E cada grupo deve tentar construir argumentos que dê duas respostas à questão, evidentemente opostas. O grupo que conseguir formular a melhor antinomia, a mais plausível, vence.

Sugestões de filmes:
O labirinto do Fauno
Alice no País das Maravilhas

Sugestões de músicas:
Metamorfose ambulante – Raul Seixas

Sugestão de poesia:

O Mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso, e que sabe a árvore?
E eu que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos
Aprenderam sozinhos:
As cousas não tem significação: tem existência
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
                       Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa



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